Smartphones, geolocalização e software de big data estão transformando a experiência de comprar — e aniquilando a fronteira entre o mundo real e o digital
Sentado numa pequena sala de reuniões, com os cotovelos apoiados sobre a mesa e segurando um iPhone próximo à boca, Gibu Thomas, vice-presidente responsável pela operação digital do varejista Walmart, a maior empresa do mundo, fala pausadamente num inglês com sotaque indiano: “Leite, pão, queijo e... suco de maçã.
Em menos de 1 segundo, um aplicativo começa a montar uma lista de supermercado já com a marca de cada produto geralmente comprada por Thomas. Mal ele acaba de falar, também aparece quanto ele gastará e a localização da loja do Walmart mais próxima, um recurso já em fase operacional em todos os Estados Unidos.
“Agora, estamos trabalhando para que, com base no histórico do usuário, o aplicativo sugira automaticamente uma lista de compras assim que o consumidor entrar na loja. Além disso, a nova versão do aplicativo vai indicar o local exato de cada produto nos corredores”, diz Thomas, que bate ponto num prédio de seis andares próximo à sede do YouTube, em San Bruno, cidade a alguns quilômetros ao sul de São Francisco.
O fato de a tradicionalíssima Walmart, com sede no estado do Arkansas e famosa por sua histórica antipatia ao mundo digital, ter se rendido ao Vale do Silício e montado um braço de inovação na Califórnia com 500 funcionários é a maior prova da revolução em curso no mundo do varejo. O símbolo desse novo momento está na mão de Thomas: o smartphone.
Desde que Steve Jobs mostrou ao mundo a primeira versão do iPhone, em 2007, ossmartphones tiveram grande impacto na maneira como trabalhamos, registramos momentos importantes e nos deslocamos. Seria natural, portanto, que eles influenciassem a forma como consumimos. É essa crença que levou o Walmart e mais uma legião de empresas a uma nova corrida tecnológica.
Na China e na Coreia do Sul, redes de supermercados estão espalhando gôndolas interativas em locais de grande fluxo de pessoas, como metrôs. A tecnologia permite que o usuário faça suas compras pelo celular, escaneando o código de barras dos produtos, que são entregues horas depois em casa.
Nos Estados Unidos, o aplicativo da rede Starbucks avisa, com base na localização do GPS do usuário, em quantos minutos ele deverá chegar à loja para pegar o café que acabou de comprar pelo celular. Na Finlândia, quem vai a uma loja da Adidas não precisa se preocupar com o horário de funcionamento.
Depois de fechada, uma vitrine eletrônica exibe os produtos em imagens em 3D e permite comprá-los tirando uma foto pelo celular. “O smartphone está transformando drasticamente a experiência de compra do consumidor”, afirma Brendan O’Brien, diretor global de mobilidade da gigante de tecnologia Cisco.
“Os varejistas descobriram que o celular é a melhor forma de levar a eficiência do mundo online para as lojas”, diz. Os smartphones, em suma, estão acabando com a fronteira entre o mundo digital e o mundo real.
Todo o avanço tecnológico produzido ao longo das últimas duas décadas pela era da internet está invadindo supermercados, concessionárias de veículos e shopping centers. Os consumidores têm, pela primeira vez, uma tecnologia na palma da mão que permite obter informações sobre os produtos dispostos à sua frente.
Podem comparar o preço oferecido ali com o dos principais concorrentes, ler resenhas de pessoas que já compraram o produto e, se estiverem encantados pelo televisor ou pelo carro e não conseguirem barganhar com o vendedor, podem comprar de um concorrente ali mesmo.
O site brasileiro Netshoes, especializado em produtos esportivos, criou recentemente um aplicativo para atrair consumidores de shopping centers. A pessoa que estiver experimentando um tênis numa loja pode tirar uma foto e imediatamente terá na tela de seu smartphone o preço cobrado pela Netshoes.
“Foi a forma que encontramos para levar o canal digital para o mundo offline”, afirma Rodrigo Nasser, vice-presidente de tecnologia da empresa. Para os analistas do setor, os maiores beneficiados por essa corrida tecnológica são os consumidores. O poder, afinal, está migrando para suas mãos.
Paradoxalmente, os smartphones também criam a oportunidade para que os varejistas tradicionais se revitalizem, como mostra o exemplo do aplicativo do Walmart que deverá sugerir uma lista de compras personalizada. Ao analisar o uso de aplicativos pelos seus consumidores dentro e fora das lojas, as grandes redes conseguem reunir milhares de dados reveladores sobre preferências e hábitos.
No fim, tudo isso se traduz num maior engajamento do consumidor. Os clientes do Walmart que entram nas lojas com o aplicativo do supermercado já em operação gastam, em média, 40% mais do que os outros consumidores.
No fim de 2013, consultorias como Bain&Company, Forrester, PwC e Deloitte publicaram pesquisas mostrando que consumidores com o celular na mão dentro da loja tendem a gastar mais, pois se sentem mais seguros na hora da compra dada a quantidade de dados a seu dispor.
“Informações relevantes sobre os produtos são fatores que pesam muito na hora da compra. Às vezes, mais do que o preço”, diz a indiana Sucharita Mulpuru, vice-presidente de pesquisa da consultoria americana Forrester.
Para os varejistas tradicionais, armazenar bilhões de bites de cada consumidor e analisá-los já não é uma barreira intransponível. A computação em nuvem fez despencar o custo de estocagem, e os softwares conhecidos como big data já são capazes de analisar um grande volume de dados em tempo real.
É essa combinação de fatores que serve de pano de fundo para a revolução em curso no varejo, um processo que coloca em xeque a distinção entre as lojas tradicionais e o e-commerce.
O público e o privado
Como é comum ocorrer com tecnologias que ascendem muito rapidamente, inovações que podem ser usadas de forma mais invasiva, como a geolocalização e o reconhecimento facial, geram debates acalorados entre os usuários.
A rede de supermercados britânica Tesco, que testa algumas vitrines interativas em metrôs e aeroportos, foi criticada por órgãos de proteção ao consumidor depois de armazenar imagens de seus clientes sem autorização prévia. Com base na foto, o sistema verificava o sexo, a idade e até o estilo de se vestir da pessoa que olhava para a vitrine.
“Isso mostra como o uso de tecnologia por alguns varejistas extrapola os limites do que é aceitável”, afirma a inglesa Emma Carr, diretora da ONG dedicada a direitos civis Big Brother Watch. “O mínimo que eles deveriam fazer é pedir a autorização do cliente.”
Para os defensores do uso dessas novas tecnologias, o “modelo Google”, aquele que troca as informações cedidas pelos usuários por um serviço melhor e gratuito, como o Gmail, deveria servir de inspiração para o varejo.
“A geolocalização mostrou-se uma excelente forma de melhorar a experiência de compra do cliente dentro da loja”, afirma a americana Julie Krueger, diretora do Google responsável pelo setor do varejo.
“Ao mesmo tempo, está ajudando varejistas online, como Amazon e Netshoes, a descobrir que seus clientes estão prestes a entrar num shopping e oferecer algum tipo de promoção. Faz todo sentido pensar em como diminuir as resistências de quem se sente invadido”.
Em meados de janeiro, a Amazon deu sinais de que deve expandir uma vez mais a fronteira do varejo. A empresa planeja despachar pacotes antes mesmo de os clientes realizarem a compra. Softwares vão analisar o histórico do cliente, as buscas recentes e até o tempo que o mouse fica parado sobre a foto de um produto.
Com tudo isso, a Amazon criará um índice para medir a probabilidade de uma aquisição. Se for muito alta, o artigo será enviado mesmo sem a confirmação da operação. Quem comprar poderá receber o produto em poucas horas. Caso o consumidor mude de ideia e não realize a compra, o caminhão voltará para o centro de distribuição.
Numa era de mudanças tecnológicas aceleradas, esse plano não chega a ser uma surpresa. Alguma dúvida de que estamos em plena revolução do consumo?